Ele seria apenas mais um em meio aquela algazarra.
Todos gritavam histéricos um nome que ele não distinguia. Mas aqueles rostos..."sim, eu me lembro daquela moça!"
Como não haveria de lembrar...graças ao amor que sentia por ela, suportou todos aqueles anos.
Madalena de Botoui, olhos vivos e um temperamento avançado para a época, vestia "jeans" sempre que não podia, e mesmo sob protestos ( às vezes parecia que seria espancada pela multidão inconformada), desfilava seus "modelitos" personalizados pela rua Deodato.
Foi num desses desfiles que ele a conheceu. Gostava de ser a ovelha negra da família, fazendo sempre o contrário que os pais exigiam.
Nunca pusera o olhar tão estudioso sobre as curvas de uma mulher, "todas são iguais e dolorosamente quadradas metidas nesses saiotes!"
Com passos desconfiados, a seguiu até sua casa, lá na rua Senador. Pode ouvir os gritos, mais parecendo os latidos dos cães, que vinham de sua mãe.
Ele sorriu. "Que familiar situação!"
No colégio, "lá ela não conseguia entrar com aquela calça"...era o que pensavam os invejosos Melos e os peçonhentos Doradores.
"Como se já não bastasse ser dessa cor! Graças a caridade do padre Otto conseguiu a bolsa nesse colégio, e ainda quer vestir-se como homem?! Blasfémia! Até mesmo para um padre. Tanto jeito de se ajudar uma negrinha."
Madalena, tinha por Botoui a sorte de francês gostar de mulata, que se enamora da tal, a deixa "prenha" e arma lona em cidade dormitório.
Sua satisfação era poder contrariar...e o fazia sem esforços, sua existência naquela cidadezinha já era uma contradição para seus moradores.
Ele não pensou duas vezes antes de engravidá-la. Seria apenas mais uma negra a parir filho de branco safado se não fosse o querer, sabe-se lá se era o quer amar ou o querer afrontar, mas o fato era que mais uma lona foi armada acerca de um olho d´água em cidade dormitório.
Tiveram filhos, mais dois depois do primeiro que se chamou Tomas. Negrinho safado de olhos verdes...Que afronta!
Ele, destituído da família, a mesma que não aceitava café com leite, seguiu seus dias trabalhando na construção da passagem da Fumaça.
Suava como homem grande que era, e chegava preto de carvão, olhos vermelhos da fumaça e um sorriso branco de satisfação.
Deixou de confrontar e junto com Botoui, que também perdeu a mão para coser suas calças, passou a coser as chitas dos bebês...
Aprenderam a paz e a viver com o suficiente de comer, mas com muito a dizer.
Mais um dia de chegar preto com sorriso branco e Madalena não soube esperar. Jogou-se pela pequena plantação e deu-lhe a carta.
" Sr.
Está convocado a defender sua pátria, que muito se alegra com seu civismo"
E lá foi ele...e continuava a chegar preto, mas agora de barro, e sem sorriso branco.
Lá conheceu Lelo e Jamil. Era o que estava escrito nas fardas dos corpos que queimou.
Viu um rio que imaginava ter sido em algum dia de águas de qualquer cor, menos vermelha.
Dormiu aquecendo corpos de amigos já sem ar.
Foram anos até receber a carta novamente.
"Sr.
Devido a morte de sua esposa no Brasil, fica o Sr. dispensado dos serviços para a pátria"
"Madalena me deixou, e meus filhos, onde estão?"
Fez mais uma vez a mala, e nela colocou as lembranças dos rostos de dois lados de uma guerra, e voltaria agora à prisão de uma saudade perpétua.
Embarcaria naquele avião, não fosse inimigo desavisado que ele queria paz. Com arma em punho e bala mirada no peito.
E ele ouvia gritos histéricos...
Não sabia o porquê...Ele sorriu. "Madalena não está morta. Vejam, é ela quem me leva pela mão!"
Autor - Guaraciara Antonio
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